Refletir sobre educação sexual e, mais especificamente, sobre gênero é cutucar uma das feridas da sociedade brasileira que ainda parece estar a longos passos de ser cicatrizada, mas que ao mesmo tempo está sendo tratada de diversas formas, ainda que incômodas para grupos dominantes, por meio de alternativas que tentam transformar a realidade e formatar um viés de igualdade no campo social, utilizando muitas vezes o princípio de equidade na busca de soluções para o enfrentamento de preconceitos e discrepâncias, assinaladas em sua maioria por tabus e intolerância.

Neste sentido, é necessária a compreensão de que o conceito de gênero muito está ligado à identidade adotada por um indivíduo geralmente com base em seus genitais, mas também considerando os aspectos psicológicos e o papel que exerce no convívio social. É importante compreender também que gênero está atrelado à masculinidade e à feminilidade (ser homem ou mulher, num contexto histórico ou cultural), e, ainda, ao estabelecimento de significados para as diferenças corporais e comportamentais.

Beatriz Lins, Bernardo Machado e Michele Escoura apontam que
Para além dessas diferenças, as dicotomias entre feminilidade e masculinidade criam desigualdades: articulado com noções de hierarquias e poder, o gênero é também uma forma social de produzir posições de desigualdade entre pessoas, coisas, espaços ou emoções. (LINS, 2016, p.24).

Não é novidade que o machismo ainda seja a relação que permeia, impera e orienta a sociedade em pleno século XXI. Mas, muito além de apenas apontar esta ferida, é preciso entender que os papéis e as relações de gênero estabelecidas são resultantes de um processo histórico de aprendizado de cada indivíduo social, que começa no berço e vai se formatando ao longo da vida. É importante considerar que a sociedade contemporânea carrega traços e ainda convive com resquícios de várias gerações e fases, mas que também, através de lutas e movimentos sociais, já teve diversas conquistas em diferentes grupos de minorias: negros, indígenas, movimento feminista, comunidade LGBT.

Contudo, enquanto grupo social, estamos longe de atingir o conceito de igualdade. No entanto, é necessário frisar novamente que os passos estão sendo dados ininterruptamente, e, na maioria das vezes, de forma adversária ao poder político e econômico. Uma dicotomia clara se relacionarmos aos direitos expressos na Declaração Universaldos Direitos Humanos (ONU, 1948), que garante os direitos essenciais a todos os humanos nos campos civis ou políticos, econômicos ou sociais.

Importante destacar que todas as ações tendem a levar no mínimo à reflexão sobre a posição do homem no mundo. Para esta discussão é bom recapitular que na história, assim como a miscigenação no Brasil não fez com que o preconceito fosse superado, o poder do voto às mulheres não fez com que elas atingissem o mesmo patamar do homem no contexto social.

Considerar tais ganhos históricos como um marco para a igualdade social é anular os percalços ainda existentes em nosso meio e aproximar de um pensamento semelhante ao Mito da Democracia Racial, que considera efetiva a superação do racismo e da discriminação racial no Brasil.

A escola como ambiente transformador

Nesta perspectiva de abolição do pensamento preconceituoso e intolerante, além da família como primeira instituição no processo de socialização e educacional (educação informal), é importante pensarmos que quem exerce papel fundamental na construção do conhecimento (científico) do indivíduo é a escola (educação formal), que desenvolve, em seu âmbito, conteúdos previamente selecionados e segue um currículo, um programa norteado e amparado por leis e regimentos.

No âmbito escolar, é importante que o professor, bem como toda a equipe pedagógica da instituição, esteja didática e dialeticamente alinhada sobre os conceitos da temática, que, muitas vezes, pode ser transversal aos componentes básicos curriculares, no entanto não menos importantes, já que gênero e sexualidade, especialmente na adolescência, são assuntos decorrentes e necessários.

O processo de fuga deste debate na educação formal, não tira da escola a responsabilidade sobre o desenvolvimento do conhecimento biológico e social do aluno no que tange à educação sexual e gênero. Mas tratar tais temas, que já são mitificados, apenas com conceitos técnicos, sem considerar a realidade do grupo escolar, é tornar o debate ineficiente ou deficiente.

É nesta linha de pensamento que Paulo Freire e Adriano Nogueira (1989, p. 19) situam essa reunião de conhecimentos como o paradigma da Educação Popular e a conceituam como “o esforço de mobilização, organização e capacitação de classes populares; capacitação científica e técnica”. Além disso, segundo Freire, o processo de ensino e aprendizagem tem que partir das vivências dos sujeitos, do que ele já conhece, trabalhar sobre os “temas geradores”, com o objetivo da transformação social.

O reconhecimento da sexualidade e a constituição da identidade

A adolescência é a fase de transição da infância para a vida adulta, caracterizada pela passagem da puberdade. É quando ocorre o desenvolvimento dos caracteres sexuais secundários e a aceleração do crescimento, levando o indivíduo ao início das funções reprodutivas. Várias transformações no corpo, que influenciam alterações psicológicas. É o momento em que a pessoa se reconhece como um ser social e sexual. É a fase dos questionamentos, da efetivação de laços e das influências, tudo em busca da definição de si.

Isso, em outras palavras, quer dizer que esse é o período das definições da vida de um indivíduo, inclusive de seu papel e de sua identidade, e isso significa na prática assimilar e reproduzir conceitos culturais constituídos ao longo da vida, seja pela presença do grupo familiar, da mídia, sociedade ou da própria escola.

Se cada grupo foi importante nesta constituição, da mesma forma continuará atuando por meio da reprodução de seus discursos. A escola, por sua vez, e de forma geral, tende a se tornar o vínculo mais forte e estruturante da identidade individual, pois é o ponto de encontro entre os diversos âmbitos da sociedade.

Em um debate mais específico, os conhecimentos provenientes de uma construção individual, muitas vezes servem como reforço aos discursos e modelos provenientes da sociedade, que determinam o que é papel de homem e o que é de mulher. Em torno da discussão de gênero, a função da escola é propiciar o debate e a problematização (no sentido de reflexão) sobre este conjunto de comportamentos e os processos de sujeição, que tenta produzir sentido sobre quem somos e como devemos nos manter para ser o que está definido.

Foucalt (2011, p. 228) identifica esse princípio como “panóptico” e o conceitua como um modelo arquitetônico capaz de suprir as necessidades das instituições de controle. Para ele, o panóptico “deve ser compreendido como um modelo generalizável de funcionamento; uma maneira de definir as relações de poder com a vida cotidiana dos homens”.

Apesar de ter uma nomenclatura recente, esse significado de panóptico está constituído desde que o homem estabeleceu suas relações. Se analisarmos através de uma linha do tempo, percebemos que na própria história os vínculos eram estabelecidos sempre com processos de extermínios, de exclusão ou de segregação do diferente, do que fugia de um padrão preestabelecido, considerados em muitos casos como anormalidades.

De maneira mais relacionada ao tema de gênero, ela também traz o homem como sujeito sempre à frente das situações, especialmente as relacionadas ao poder. Podemos compreender que essa hierarquia construída desde os primórdios com conceitos justificados pela virilidade, e que foi seguida ao longo do tempo, teve diferentes marcos, mas através de um movimento social nomeado Feminismo, desencadeado no fim do século XIX, este paradigma do homem sobre todas as coisas teve os primeiros atos rumo ao seu desmantelamento, com a luta pela participação política da mulher.

O Feminismo foi a raiz da problematização que resultou na elaboração de seu próprio conceito. Passou por outros dois diferentes momentos desde a primeira luta; entre as décadas de 1960 e 1980 houve grande debate em torno da igualdade e o fim da discriminação; agora, e desde a década de 1990, a reivindicação do movimento feminista é pelo reconhecimento da diversidade dentro da diferença.

O Movimento Feminista considera que não somos iguais e que as diferenças precisam ser consideradas e integradas, o que traz a tona o princípio da equidade, colocando a mulher em situações, funções, papeis, cargos iguais aos que antes eram de privilégio dos homens.

Apesar de a sociedade na prática ainda não ter estabelecido em seu mais profundo significado o conceito de multiculturalismo, os debates cada vez mais presentes provocam a reflexão e a quebra de paradigmas sociais. Nesta perspectiva é importante que a escola também seja porta para o debate e para o rompimento de opiniões e sentimentos concebidos sem o exame crítico.

O debate na escola e os norteadores

A escola como instituição que deve pregar pelo multiculturalismo não pode admitir em sua função educadora a existência de uma situação em que um grupo social seja dominante e superior aos de outros grupos. Ela deve servir de alicerce para a construção não de muros, mas de conhecimento, reflexão, e respeito para com as diferenças.

Conforme Lúcia Sousa e Mareli Graupe,
A compreensão do debate de igualdade de gênero propicia ao entendimento de que a igualdade de direitos deve considerar as diferenças entre os sexos, mas não fazer destas diferenças um motivo para continuidade das desigualdades. (SOUSA, 2016, p. 4).

O ambiente escolar não deve ser um espaço que reforça a segregação, sequer pela identidade de gênero. O papel da escola deve ser o de incluir e promover o convívio com as diferenças, com a diversidade, utilizando-se da Educação como meio de efetivar os direitos humanos – universais, não homogeneizantes, não relativizados – e capacitar o sujeito para a cidadania plena, cumprindo com sua função social.

Essas práticas são embasadas e asseguradas à Educação pela Legislação e por orientações curriculares. A Constituição Federal prevê a existência de uma sociedade plural e diz que é objetivo fundamental da República “promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”, considerando a igualdade entre todos perante a lei.

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação LDB 9394/96, por sua vez, aponta que o ensino deve ser ministrado com base em princípios como os de pluralismo de ideias e concepções pedagógicas, e respeito à liberdade e apreço à tolerância.

Os Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN traz a Educação Sexual como tema transversal ao currículo e dá significado ao debate com premissas como as de que se deve respeitar a diversidade de valores, crenças e comportamentos existentes e relativos à sexualidade, desde que garantida a dignidade do ser humano; a proteção contra relacionamentos sexuais coercitivos e exploradores; o desenvolvimento da consciência crítica e a tomada de decisões responsáveis à respeito da própria sexualidade; e o reconhecimento como determinações culturais de características socialmente atribuídas ao masculino e ao feminino.

Além disso, a Base Nacional Comum Curricular também indica uma série de competências que colaboram com a promoção e construção de um espaço democrático na escola, tratando pontos como a argumentação com base em fatos, dados e informações confiáveis, a empatia, o diálogo, a resolução de conflitos e a cooperação como meios para a defesa de ideias e pontos de vista, tomada de decisões com posicionamento ético e a promoção do respeito ao outro e aos direitos humanos com acolhimento e valorização da diversidade sem preconceitos de qualquer natureza.

Com isso, é possível pensar na construção coletiva, ainda que rodeada de adversidades, de uma escola cada vez mais inclusiva, tolerante, respeitosa e caminhando sempre em direção à democracia, eliminando permanentemente os prejulgamentos, concepções de senso comum, atitudes de ódio e agressividade irracional com a maneira de ser e estilo de vida dos indivíduos.

(NOVEMBRO/2019 - apresentado ao Curso Letras – Português e Espanhol - Licenciatura da UNOPAR - Universidade Norte do Paraná, para as Atividades Interdisciplinares)

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